terça-feira, 17 de agosto de 2010

Crônica- Dor de dente

Gheremias e Lafayette (isso mesmo …) eram colegas de trabalho há quase 15 anos. Nunca se falaram de verdade. Os primeiros contatos sempre foram no corredor, naqueles famosos “opa” mudos, que todos que trabalham em empresas grandes o suficiente pra ter 1 corredor e mais de uma sala onde você não sabe o nome das pessoas por lá, sempre fazem.

A relação começou a se estreitar após almoços do segundo ano de firma de ambos. Lafayette acabara de passar por um tratamento de canal do qual a anestesia não pegou e depois da dor que sentira jurou aos céus que daquele dia em diante, cuidaria dos seus dentes melhor do que sua coleção de aeromodelos.

O ritual de escovação do Gheremias já demorava por volta de 10 minutos. Incluindo escovação, limpeza com fita dental (dentes largos, o fio não fazia efeito, explicou ele uma vez, tímido), limpador de língua, outra escovação, enxaguante e AHHHH! Que boca limpinha!

Lafayette rapidamente chegou aos 10 minutos de ritual e aos poucos começou a ganhar respeito do colega. O primeiro indício foi receber o aviso que a pia do canto, próxima ao pegador de papel-toalha, não era uma boa escolha, pois fica eternamente molhada com o respingo das mãos úmidas que lá sempre aparecem em busca das tais 2 folhas secas (nunca suficientes); depois, pelas trocas de experiências com os creme dentais (pasta de dente era ofensa grave por lá!), e culminou com a admiração total no dia que Lafayette trouxe, preocupado com o colega, um folheto explicando os danos do hábito de palitar os dentes pela moderna odontologia estética.

Por quase 13 anos tudo isso acontecia de maneira quase silente. Os contatos, a admiração, as trocas, eram feitas no máximo por algumas palavras, enquanto um estava alternando de procedimento (da escovação para a fita dental, por exemplo) e o outro, firme, seguia o seu protocolo. Foram belos 13 anos.

Um dia, Lafayette esperou Gheremias passar pela sua baia com a nécessaire em mãos e depois de uns 3 minutos, também foi cuidar de seus dentes (agora muito melhores que seus aeromodelos, a coleção foi vendida após o 1º casamento). Ao entrar no banheiro viu que havia um postulante a novo membro do grupo : Aurelho (não é Aurélio, é Aurelho). Menino novo, aparentemente criado pela avó que era obsessiva com os dentes de “marfim” do menino, explicou ele logo de início de conversa.

E o tal Aurelho falava. Como falava o Aurelho.

E Gheremias começou a não gostar dessa história.

Em um mês de convivência, Aurelho já tinha arrancado informações de Lafayette que Gheremias, em 13 anos, nunca ousou pensar.

Até que em outro dia Gheremias desviou, como sempre fazia, o que seria o caminho mais curto para o banheiro, passando em frente à baia do Lafayette. Ninguém sentava ali. Estranho. Ao se aproximar do banheiro, risadas altas e despreocupadas começaram a ferir os ouvidos do pobre veterano. Ao abrir a porta, o pior de todos os pesadelos : 1 pia interditada, 2 pias ocupadas (uma por Lafayette, outra por Aurelho), e apenas uma pia livre. A pia do canto.

Lafayette, engolindo seco o riso, se virou assustado e rapidamente disse:
- Calma! Eu posso explicar tudo!
- Não, Lafayette. A pia do canto não tem explicação!
- Não é o que você está pensando!
- Chega!

Anos depois, Gheremias foi encontrado por um vendedor da firma como taxista noturno. Palito de dente na boca, dentes acabados e, principalmente, um emprego que não tinha colegas, nem hora de almoço. Melhor prevenir …

Autor: Ricardo Casale

Fonte: Crônistas Reunidos


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